“O ouvido é o caminho do coração.”
Voltaire
Um pequeno começo.
Declamar um poema. Fazer a corte. Cantar uma serenata. Seja qual for a etiqueta pendurada à porta é facto inegável que todo o homem, que é homem, já proferiu o seu piropo. Muitos até o mesmo várias vezes. Outros ainda adaptam-nos às diferentes conjunturas diárias, desenvolvendo uma peculiar capacidade de improvisação, “Ajudas-me a procurar o meu cãozinho? Acho que entrou no teu quarto de hotel”, ou mesmo “Desculpa, pensei que fosse uma camisola em Braille”.
Desde tempos primatas, onde um cru puxão de cabelos simbolizava a paixão selvagem do macho alfa pela fêmea, passando pelas serenatas à janela e pelas tradicionais cartas de amor, o homem sempre procurou cativar o sorriso da sua amada de tantas formas quantas as formas que a imaginação permitia.
Exemplos flagrantes disso mesmo são os filósofos greco-romanos, os poetas renascentistas e os trovadores bucólicos da corte d’Él Rei D. João II. Comum a todos, o desejo ardente de cantar a beleza da mulher.
Se bem diz o poeta “O amor é fogo que arde sem se ver”, melhor diz o povo “O que é bom é para se ver”. E em pleno século XX, dá-se a inversão do papel submisso do poeta trovador prostrado aos pés da mulher que se erguia da janela mais alta da torre do castelo.
É assim que hoje, enquanto a mulher moderna se deleita com os seus passeios vespertinos, escuta a voz do desejo bradar fulgurante do cimo de um andaime – É carapau.
Estamos então perante um estilo de poesia Royal ou poesia instantânea. Uma poesia destinada a provocar um efeito, seja ele qual for, imediato e espontâneo. É uma poesia nua, sem burilados ou versos alexandrinos. Ecuménica e inaudita marca um virar de página na literatura portuguesa do novo milénio.
Embora algumas das peças mais apreciadas destes poetas sejam bastante elaboradas, é do simples trocadilho ou da banal metáfora que brotam os mais belos versos da poesia de andaime. Há no entanto que saber dar o devido valor ao papel fundamental que a oralidade desempenha nesta corrente. Sendo que, por vezes, um simples “Ó boa”, exclamado em voz grossa e rouca, embrulhado numa entoação rude e rematado com uma vigorosa coçadela do saco e uma valente cuspidela de um qualquer terceiro andar da obra, surte o mesmo efeito que um quiçá mais complexo “Ó filha, só não tenho pêlos na língua porque tu não queres”.
Capítulo 1
A rima rica
Os primeiros dados à nossa disposição sobre o surgimento da rima na poesia ocidental remontam a origens semíticas que segundo Paul Klopsch podem ser datadas de 250 d.C. aproximadamente. Já Comodiano de Gaza, poeta cristão do século III, compunha as suas obras em hexâmetros, não imitando os padrões clássicos de acentuação quantitativa. A poesia cristã, com o seu objectivo primordial didático-encomiástico, servia-se então do latim para a expressão de “boas novas” com um novo artifício de expressão estética para os ditos poéticos.
Recorrendo então a uma das figuras de estilo mais enraizadas nas obras poéticas, a rima, pedreiros, marceneiros, trolhas e carpinteiros deambulam pelos versos desta vida com declarações de desejo e paixão.
1. Ó flôr dá para pôr?
2. Ó musa dás-me tusa.
3. Ó bomboca, mostra a toca?
4. Ó doce, era onde fosse.
5. Ó beleza, deixas-ma tesa.
6. Ó boneca, vai uma queca?
Capítulo 2
O trocadilho
O trocadilho resulta de uma semelhança formal entre dois enunciados sendo um deles, muitas vezes, elíptico. Semelhança que pode chegar à identidade. Alguns trocadilhos relacionam uma paráfrase com o seu parafraseado. O trocadilho pode ser intencional ou acidental, como ocorre na cacofonia. Há trocadilhos com intenção crítica, na qual se deseja transferir para um enunciado o suscitado pelo outro ou aqueles em que o efeito resulta da relação que medeia os dois enunciados. No exemplo do trocadilho do Barão de Itararé: “Adeus, Pátria e Família” o cómico resulta da relação de oposição extrema entre a paráfrase e o parafraseado.
Parte da secular tradição oral portuguesa, com raízes nas antigas cantigas de escárnio e nas sátiras de Pêro Rodrigues, o trocadilho é um refúgio artístico profícuo na fina arte de bem trovar.
7. És como um helicóptero: gira e boa.
8. Ó fêvera, junta-te aqui à brasa.
9. Ó jóia, anda aqui ao ourives.
10. Ó “morcona”, comia-te o sufixo.
11. Ó filha, aperta aqui que é mais fofo.
12. Ó jeitosa, és mais apertadinha que os rebites de um submarino.
13. Andas na tropa? É que marchavas que era uma maravilha.
14. Se fosses um barco pirata, comia-te o tesouro que tens entre as pernas.
15. Tantas curvas e eu sem travões.
16. Usas cuecas TMN? É que tens um rabinho que é um mimo.
17. A tua mãe só pode ser uma ostra para cuspir uma pérola como tu.
18. Tens um cu que parece uma cebola, é de comer e chorar por mais.
19. Só queria que fosses uma pastilha elástica para te comer o dia todo.
20. Tanta carne boa e eu em jejum.
21. Se o teu cu fosse um banco, fazia uma poupança a taxa fixa.
22. Ó filha, agora já percebo porque é que tenho a talocha nas mãos.
23. Belas pernas, a que horas abrem?
24. A ti não te custava nada e a mim sabia-me tão bem.
25. Até davas uma boa actriz mas és muito melhor atrás.
Capítulo 3
A metáfora
A metáfora caracteriza-se singularmente pelo uso de uma palavra ou de uma expressão num sentido que não é o próprio, baseado numa relação de semelhança. O processo de construção da metáfora requer uma comparação prévia entre entes diversos retendo o que se considera igual ou semelhante, para originar um novo significado. Sendo assim, a metáfora é muito mais do que uma figura da língua, é do pensamento, é cognitiva. Comparação mental ou abreviada, onde prevalece a relação de semelhança.
Não tão óbvia como a comparação mas não sendo uma coisa diferente, a simples metáfora confunde-se já com a maneira de falar de cada um. Usada quase sem querer numa tentativa de escapar ao óbvio, deixa à mulher o papel de adivinhar e interpretar o piropo.
26. Ainda dizem que as flores não andam.
27. Ó filha, com um cuzinho desses deves cagar bombons.
28. Ó filha, levavas aí com o martelo pneumático que fazíamos o túnel do Marquês num instante.
29. Que bela anilha que tu tens, deixa lá enroscar o meu parafuso.
30. Só custa a cabeça que o resto é pescoço.
31. Que rica sardinha para o meu gatinho.
32. Anda cá a cima afagar-me a cobra zarolha.
33. Ó filha, o teu pai devia ter a régua torta para te fazer com curvas assim.
Capítulo 4
Os ordinários
O palavrão ou aumentativo de palavra é uma gíria de cunho, conhecido em Portugal como calão de baixo nível. Considerados imorais por muitas religiões, os palavrões são inadequados na norma culta da língua portuguesa e geralmente usados de forma popular e brejeira. Excepto por licença poética.
Esta secção, não aconselhada a leitores com pacemaker, revela a face mais obscura da poesia de andaime. Poesias rudes e deliciosamente envenenadas com sarcasmo e desdém. Versos muitas vezes escritos à hora de almoço, sem a supervisão de um capataz devidamente credenciado e declamados apenas pelos mais audazes dos homens.
34. Ó filha, fazia-te um pijaminha de cuspo.
35. Quem me dera que fosses um frango para te meter um pau no cu e fazer-te suar.
36. Só queria que fosses um cavalinho de carrossel, para te montar todo o dia por 50 cêntimos.
37. Ó filha, anda cá a cima que até a barraca abana.
38. Contigo filha, era até ao osso.
39. Metia-te-a inteira até que ma mordesses.
40. Posso tocar no teu umbigo da parte de dentro?
41. Ai de ti que eu saiba que esse cuzinho anda a passar fome.
42. Ó filha, enchia-te essa cona toda de massa.
43. Só não tenho pêlos na língua porque tu não queres.
44. Ó filha, anda cá a cima que ele não se vai chupar sozinho.
45. Tens uns olhos tão lindos, tão lindos, que te comia essa cona toda.
46. Caiava-te toda de branco por dentro.
47. Contigo era até encontrar petróleo.
48. Ó linda, sobe aqui à palmeira e anda-me lamber os cocos.
49. Ó faneca, anda cá que o pai unta-te.
50. O teu cu parece uma serra eléctrica, não há pau que lhe resista.
51. És tão quente que até se me grelham os tomates.
52. O meu amor por ti é como a diarreia, não o consigo manter cá dentro.
53. Diz-me quem é a tua ginecologista para eu lhe ir chupar o dedo.
54. Com esse cu, estás convidada a cagar na minha casa.
55. Contigo até me tornava mineiro, só para te abrir os buracos todos.
56. Podia ficar um mês a cagar trapos mas comia-te com roupa e tudo.
57. Posso pagar-te uma bebida ou preferes em dinheiro?
58. Ainda dizem que a fruta verde não se come.
59. Ó filha, lambia-te o que tu mais gostas.
60. Ó fofa, agarra aqui na corneta.
61. Agarra-me aqui no tarolo, ó princesa.
62. O teu pai deve ser arquitecto, tens um cu que é uma obra.
63. Ó filha, agarra aqui com a mão.
64. Que rico filho. Anda cá cima que eu faço-te outro mas mais bonito.
65. Ó sol, sopra aqui na minha flauta pingante.
66. Ó boneca, era a estrear.
Capítulo 5
A subtileza do povo
Apesar das vestes rurais de trabalhador da construção civil, das marcas de suor que desenham pequenos testes de Rochard nas camisolas de alças brancas e amarrotadas e de uma voz arranhada pelos anos, o homem das obras também tem coração. Muito por causa das pressões da sociedade mas sobretudo de certos e determinados indivíduos que não permitem ao simples homem das obras seguir as pisadas de um Camões ou de um Pessoa, os registos desta face da poesia de andaime são escassos e pouco documentados.
Procurando encontrar um ponto de transição mantém um equilíbrio de forma e estilo entre correntes poéticas, nos primeiros anos de andaime, muitos são os que não se libertaram completamente das inibições da poesia trágico-tropical trovadoresca. Declamam versos suaves que por vezes se confundem com cartas de amor renascentistas.
67. Ia até ao fim do mundo por um dos teus sorrisos, e ainda mais longe pela outra coisa que podes fazer com a boca.
68. Estou a lutar desesperadamente contra o impulso de fazer de ti a mulher mais feliz do mundo.
69. Sabes onde ficava bem a tua roupa? Toda amarrotada no chão do meu quarto.
70. Só a mim é que não me calha uma destas na rifa.
Capítulo 6
Os religiosos
A Igreja, pela natureza universal da sua mensagem, não se identifica objectivamente com nenhuma cultura, pois pode exprimir-se em todas elas, sendo capaz de as influenciar, intervindo no fenómeno da mutação cultural.
Não será de estranhar que, num país de fortes tradições religiosas como Portugal, também as expressões clericais e sacerdotais se misturem no seio da linguagem do amor e do romance. Como disse um dia o calceteiro João da Silva Ramalho, ao olhar aquela que viria mais tarde a ser sua esposa – Ai Jesus, que és tão boa.
71. Diz-me lá como te chamas para te pedir ao Menino Jesus.
72. Ó filha, queres ir ao céu? Sobe os andaimes que o resto do caminho é por minha conta.
73. Ó filha, se não acreditas que Deus é feito de carne e osso sobe os andaimes e anda cá tocar-me.
74. Abençoados pais que conceberam esta coisinha linda.
75. Por acaso és católica? É que tens um cu que valha-me Deus.
Capítulo 7
Os espirituosos
Normalmente escritos depois de almoço logo após as primeiras garrafas de vinho, estes versos reflectem o espírito jovial que se vive nas empreitadas lusitanas. Há ainda quem os chame também de reinadios ou reinadões.
76. Se eu estivesse no teu lugar, tinha sexo comigo na boa.
77. Ó menina, cuidado que prendeu-se-lhe a parte de bai xo da saia no manípulo da betoneira.
78. Essa roupa fica-te muito bem, mas eu ficava-te melhor.
79. Se cair, já sei onde me agarrar.
80. Acreditas em amor à primeira vista ou tenho que passar por aqui outra vez?
81. Anda cá que te vou dar uma sessão de raboterapia.
82. Não sou muito bom em matemática mas, 1+1 = 69?
83. Não te esqueças do meu nome, mais logo vais gritá-lo.
84. Minha senhora, troco a sua filha por um piano, assim, podemos tocar os dois.
85. És um bilhete de primeira classe para o pecado.
86. Queria ser um patinho de borracha para passar o dia na tua banheira.
87. Deves estar tão cansada, passaste a noite às voltas na minha cabeça.
88. Posso não ser bonito como o Brad Pitt, nem ter os músculos do Schwarzenegger, mas a lamber sou uma Lassie.
89. Com uma montra dessas, imagino como é o armazém.
90. Ó filha, contigo era até partir os pés à cama.
91. Ó doce, anda cá a cima fazer uma festinha ao tareco.
Capítulo 8
Quem desdenha…
Quem desdenha quer comprar. Mais um daqueles casos em que a sabedoria popular, transmitida ao longo de gerações, raramente se engana. Mas a grande novidade encontrada nesta poesia foi a descoberta de poetas com níveis de escolaridade muito superiores aos que antigamente se pensava. Uma situação que tem com certeza a ver com a emigração de licenciados de leste para a construção civil portuguesa.
Nunca antes se haviam encontrado vestígios de poemas de trabalhadores da construção civil com um nível de escolaridade igual ou superior ao antigo quinto ano de liceu. Neste pequeno capítulo o leitor vai ler poemas de indivíduos que claramente frequentaram, pelo menos, o segundo ano de faculdade.
Neles podemos ver a aplicação prática de técnicas avançadas de psicologia invertida numa corriqueira frase de engate.
92. Não és nada de se deitar fora, já tive pior e a pagar.
93. Podes não ser a rapariga mais gira, mas com a luz apagada também é bom.
94. Ó filha, tens carinha de modelo mas o teu cu é um continente.
95. Com umas bóias dessas o Titanic não tinha ido ao fundo.
96. Com um piso desses deves ser mais rodada que a 2ª Circular.
Capítulo 9
Simples e bonito
97. Ó filha, anda cá dar um beijinho ao trolha.
Capítulo 10
Quando a canção falha
A rejeição é o pior dos inimigos. O estômago revolve-se e vem ao de cima um sentimento de angústia e desagrado. O balde de água fria da ribeira que explode como uma pequena bomba de cariz nuclear.
Nesses instantes de loucura soltam-se palavras amargas de vingança e olhares frios de desdém.
98. Ai não queres? Eu vi logo, gorda como estás é porque não suas muito.
99. Mau? Mau o quê? Disse algum disparate ou chupas aqui mesmo?
100. És mesmo esguia, pareces uma sereia: metade mulher, metade baleia.
101. Ó filha, com menos cu também se caga.
102. Ó filha, se o teu cu fosse uma torrada, precisava de um remo para o barrar.
103. Também só queria saber o teu nome para quando me masturbar saber em quem estou a pensar.
104. Ó filha, só não sou teu pai por quinhentos paus.
105. Ó filha, com esse atrelado só com carta de pesados.
Nota final.
Apenas uma breve nota, que me permito ser algo controversa. Parece-me a mim, mais a nível pessoal do que propriamente como linguista e historiador, que apesar de estarmos perante a corrente poética que mais expressão tem no nosso país, a única capaz de gerar novos poetas a cada dia que passa, com tertúlias diárias de declamação em todo o país, e quiçá, com mais obras na rua que qualquer outra forma de poesia, o público em geral e sobretudo os críticos não lhe sabem dar o merecido valor. Pelo contrário. É cada vez mais forte a voz que se opõe às manifestações públicas destes poetas de andaime.
Espero que este colectânea sirva para mudar um pouco a nossa postura geral em relação a estes artistas.
“Uma obra literária
Profundamente fundamental na conjuntura
Sociocultural do equinócio português.”
Um entendido nestas coisas
“O melhor livro de casa-de-banho da última década.”
Um jornal com críticos muito importantes
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